Tuesday, July 06, 2004

Sobre o "Depósito" da Internet...

Sobre o "Depósito" da Internet...
Por JOSÉ LUÍS BORBINHA
Quinta-feira, 31 de Julho de 2003
Público

A produção, armazenamento e disseminação de informação documental em meios e formatos digitais traz novas implicações aos arquivos e bibliotecas. Um dos casos mais mediáticos será o da preservação de conteúdos da Internet de objectivo interesse público, tal como referido por exemplo por José Pacheco Pereira no PÚBLICO de 17/07/2003. Essa não será a única faceta do problema, e nem todos a considerarão talvez a mais premente ou complexa. Mas sendo de fácil percepção é uma excelente referência e ponto de partida para a discussão do caso geral da preservação digital.

Na Internet, mas também em redes internas, podemos encontrar desde simples transposições digitais de objectos tangíveis, como imagens digitalizadas ou transcrições textuais de obras impressas ou manuscritas, até complexos sistemas de informação com bases de dados associadas, recursos multimédia, etc. Ainda que as soluções finais não sejam uniformes, a preservação de tudo isto tem no entanto de ser encarada de uma forma integrada, já que envolve a revisão de concepções tradicionais tanto nos planos horizontais (âmbitos das bibliotecas, arquivos e mesmo museus) como verticais (relações entre instituições, patrimoniais e outras, como criadores, utilizadores e fornecedores de sistemas; âmbito e interesse público versus privado, etc.).

Esta realidade foi percebida já há muito pela Biblioteca Nacional (BN), na sua dupla qualidade de instituição de depósito e coordenadora da Base Nacional de Dados Bibliográficos (PORBASE). O problema tem sido mesmo estudado em parcerias internacionais com outras organizações e bibliotecas, com resultados na definição de modelos, processos e normas para metadados, descrição, recolha e preservação digital. Tudo isso tem trazido reconhecimento à BN e seus profissionais, com tradução na participação regular em conferências, grupos de trabalho e até actos de consultoria para a Comissão Europeia e National Science Foundation (Estados Unidos), culminando actualmente na presidência da Comissão Europeia para a Preservação e Acesso (ECPA) e na coordenação do programa internacional UNIMARC da IFLA. Visando promover sinergias ou apenas despertar a motivação para o problema a nível nacional, tem-se tentado sempre que possível partilhar essas visões e resultados com outros potenciais parceiros, tais como os Arquivos Nacionais (AN/TT), bibliotecas universitárias e cooperantes da PORBASE, INESC, Universidade de Lisboa, ISCTE, FCCN, RTP, etc. Num encontro da ECPA, realizado em Lisboa em 25/11/2002, profissionais da BN, AN/TT e RTP redigiram mesmo um "Manifesto para a Preservação Digital", largamente anunciado e disponível em http://purl.pt/142 .

Verifica-se assim que a BN tem conhecimento e faz parte, naturalmente e há muito, de uma comunidade que em face ao problema da preservação digital partilha ideias concretas sobre que entidades depositárias deveriam existir (ou não), sobre o que deve ou pode (ou não) ser recolhido da Internet, sobre o que deve ou pode (ou não) ser depositado, sobre o que deve ou pode (ou não) ser tecnicamente feito para efeitos de registos e preservação, assim como o quê e porquê de cada "sim" e de cada "não". Perante isto, pergunta-se então porque será tão manifesta a falta de resultados concretos e consequentes em Portugal nesta área, especialmente os apresentados pela BN?

Para responder deve-se reconhecer a verdadeira natureza e essência do problema. Esta é altamente transversal, envolvendo sempre do lado do Estado, por exemplo, e seja qual for a estrutura governativa do momento, a necessidade de uma coordenação de alto nível entre vários ministérios e instituições. Em casos como o Reino Unido, Austrália, Canadá, Holanda e países do Norte da Europa, o problema foi já abordado nos parlamentos ou governos, com decisões políticas e iniciativas concretas. Nos Estados Unidos a Biblioteca do Congresso coordena há três anos um programa específico com um orçamento de cem milhões de dólares e uma estratégia para envolver outros actores tão longe quanto possível, especialmente privados ("National Digital Information Infrastructure and Preservation Program").

Em Portugal, a abordagem da BN tem sido efectuada apenas dentro do seu âmbito de competências tradicional e com os seus recursos próprios. Tendo a realidade actual da BN sido definida para o chamado "paradigma tradicional", mas estando nós perante um problema disruptivo com essa mesma realidade (tanto nos planos técnico e tecnológico como nos formais e até legais), é fácil imaginar as dificuldades encontradas em se tentar transformar nestas condições visões técnicas e estratégicas, mesmo que atempadas e correctas, em soluções concretas e estáveis. Por exemplo, não levanta problemas técnicos de maior para a BN efectuar neste momento uma cópia profunda da Internet Portuguesa (incluindo dos "weblogs"). Mas uma vez isso efectuado, como e quem assumirá a responsabilidade da organização e preservação a longo prazo dos resultados, justificando assim esse passo? Não certamente os serviços actuais da BN, já esgotados na resposta ao "paradigma impresso" (na manutenção da PORBASE e cumprimento da actual Lei de Depósito Legal).

O melhor que a BN conseguiu até ao momento foi a apresentação do caso em 2001 aos então ministro da Ciência e Tecnologia e gestor do Programa Operacional da Sociedade da Informação (POSI). O possível de conseguir nessas condições foi um projecto de apoio à iniciativa Biblioteca Nacional Digital, com uma componente importante na área do depósito digital a financiar parcialmente pelo POSI (o desejável teria sido um programa nacional, mais abrangente e consequente, mas "mais vale um pássaro na mão..."). Este projecto arrancou apenas em 2003, depois de ultrapassadas dificuldades formais inesperadas por a BN não dispor de autonomia financeira, numa mostra das dificuldades extra para uma instituição deste género que se proponha enfrentar estes problemas de forma voluntarista, sem o devido enquadramento específico. Prevendo isso, já o parágrafo final do Manifesto para a Preservação Digital dizia: "Os subscritores solicitam a todos aqueles que se sintam motivados por este manifesto a sua contribuição para a divulgação alargada do mesmo, assim como da tomada de posição pessoais, colectivas ou institucionais que se mostrem possíveis e que, no mesmo espírito, possam conduzir a resultados consequentes." Recomenda-se por isso, em complemento a este texto, uma leitura ao resto do Manifesto, e já agora também que este pedido final fosse ouvido... Por favor!

Professor do Instituto Superior Técnico, em comissão de serviço na Biblioteca Nacional

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